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terça-feira, 28 de maio de 2013

A Convenção sobre Venda Internacional

Por Daniel Gruenbaum - valor econômico de 28.5.2013

A Convenção das Nações Unidas sobre Venda Internacional de Mercadorias, conhecida como "CISG", foi aprovada pelo Congresso Nacional (Dec. Leg. nº 538/2012) e, em março, o Brasil manifestou no plano internacional o desejo de se vincular àconvenção. Espera-se que em breve ela seja promulgada pela presidente da República e publicada no Diário Oficial. Com isso, a convenção entrará em vigor abril de 2014 (art. 99 (2) CISG), passando a reger os contratos celebrados a partir dessa data (art. 100(2) CISG).

Nessa reta final do processo de internalização, ao mesmo tempo em que com razão se celebra a iniciativa de inserir o Brasil no grupo de quase 80 Estados-parte da Convenção, responsáveis por cerca 2/3 do comércio internacional, deve-se olhar com atenção para a tradução de seu texto. A versão em português em uso no processo legislativo contém algumas inconsistências e imprecisões se comparada com versões nas línguas oficiais, especialmente em inglês e francês. Essa versão em português foi possivelmente inspirada em louváveis traduções livres feitas dentro do que agora se mostra um bem sucedido esforço de divulgação da Convenção no Brasil. Ou seja, traduções feitas em outro contexto e para outra finalidade. O texto merece, agora, ajustes para que ganhe a precisão necessária a uma versão oficial em português.

Alguns exemplos ilustram a necessidade de ajustes formais no texto antes de sua promulgação e publicação. O art. 2 (b) exclui do âmbito da Convenção as vendas realizadas por leilão ("by auction", "aux enchères"), a versão em português se refere, porém, à "hasta pública". Da mesma forma, o art. 12 se refere ao "término [do contrato] por mútuo acordo das partes" ("termination by agreement", "résiliation amiable"); a versão em português se refere, porém, à "rescisão do contrato", um termo reservado pela convenção (e pelo resto da própria tradução) para término unilateral do contrato por uma das partes em razão de grave descumprimento contratual ("avoidance", "résolution").

Já o art. 39 (2) prevê que o termo inicial do prazo máximo de dois anos para o comprador alegar a desconformidade é o momento em que as mercadorias tiverem sido "entregues ao comprador" ("handed over to the buyer", "lui ont été effectivement remises"); a versão em português se refere, porém, à data em que as mercadorias "passarem à sua posse". A mesma referência à posse surge no art. 60 (b) ("taking over", "retirer"). Ocorre que a convenção teve o cuidado de não seguir uma redação com coloração nacional e evitou, conscientemente, empregar institutos típicos desse ou daquele sistema jurídico, como certamente é a posse no direito brasileiro. Essa mesma preocupação levou a Convenção a evitar o termo "ação" - usado pela tradução (p. ex. art. 45(2), 46(1)), 61(2), 62) - para descrever os "direitos" ("remedies", "droits") do comprador e vendedor em caso de inadimplemento.

Em diversos momentos a tradução emprega a mesma palavra, quando a convenção claramente optou por dois termos distintos. Por exemplo, emprega-se a mesma palavra prejuízo para traduzir tanto o "detrimento" ("detriment", "préjudice") referido no art. 25, quanto o "prejuízo" ("loss", "perte") referido no art. 74. Da mesma forma, emprega-se a mesma palavra evidente para traduzir tanto o "se tornar aparente" ("it becomes apparent", "lorsqu'il apparaît") referido no art. 71, quanto o for manifesto ("it is clear", "il est manifeste") referido no art. 72, como se a convenção não tivesse adotado níveis distintos de previsibilidade em cada dispositivo. Em outros momentos, a tradução usa palavras diferentes quando a convenção se valeu de um mesmo termo. Por exemplo, a tradução se refere ora a estabelecimento (art. 1, caput), ora a estabelecimento comercial (art. 1(2), 10, 12, 24 etc.), quando a convenção se refere sempre a estabelecimento ("place of business", "établissement"), sem qualquer qualificação - empresarial, comercial, industrial.

Como reconhecem doutrina e jurisprudência especializadas, a interpretação da CISG deve, em caso de dúvida, ser baseada nas versões autênticas do texto - árabe, chinês, espanhol, inglês, francês e russo -, preferencialmente em inglês, língua em que o anteprojeto foi elaborado e as negociações, essencialmente conduzidas. Mas uma tradução precisa para o português é indispensável para que não se crie um obstáculo adicional à aplicação autônoma e uniforme exigida pela própria Convenção (art. 7(1) CISG).

 Em seu diálogo com Romeu no jardim dos Capuletos, Julieta pergunta o que há em um nome e conclui que, chamada por qualquer outro, a rosa teria o mesmo cheiro (ato II, cena II, l. 45-46). A lição, certa para tantas coisas da vida, não vale para a tradução de convenções internacionais. A CISG não é uma rosa.
Daniel Gruenbaum é advogado, doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP), professor visitante no programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

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