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terça-feira, 28 de maio de 2013

Cada contrato tem uma função social

Por Kleber Luiz Zanchim| Valor Econômico
É um alívio que, aparentemente, a “era dos princípios” no direito privado esteja chegando ao fim. Desde o início da vigência do Código Civil de 2002, milhares de obras, debates, decisões judiciais e conversas de bar abordaram três figuras que ganharam ares de uma revolução na teoria contratual brasileira: boa-fé, equilíbrio e função social dos contratos. Passados pouco mais de dez anos, a maioria dos operadores do direito já se mostra cansada desse assunto, principalmente porque, até hoje, os princípios continuam com conteúdo pouco definido.
O momento é bom, portanto, para dizer o que antes soaria terrível, mas agora faz sentido: as referências principiológicas são menos relevantes do que muitos pensavam, com destaque para a função social, talvez a mais frágil.
O artigo 421 do Código Civil prescreve que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. De uma frase tão curta surgiram discussões longuíssimas que, na prática, criaram grande confusão sobre o sentido da norma. Alguns buscaram sua inspiração na função social da propriedade, outros na dignidade da pessoa humana, outros na ideia de solidariedade. Em todos os casos, verifica-se a miopia que não vê o quanto os contratos diferem entre si. Como o mandato poderia ter a mesma função social da compra e venda, do seguro, do leasing? Isso só para ficar naqueles que, legal ou socialmente, são tipificados. Imagine-se quando são acrescentados os negócios atípicos nessa ponderação. É absolutamente irracional sustentar que todos tenham a mesma função social.

Cada contrato revela uma função social particular. É o que diz o artigo 421 citado acima: “função social do contrato”. O contratante deve observar os limites da avença que celebrará, e não os de todas as existentes no mundo. Defender o contrário quase aniquilaria a liberdade de contratar. Um contrato destinado a outorgar poderes (mandato) não pode ter a mesma função de outro orientado à circulação de bens (compra e venda), ou daquele celebrado para garantia contra risco determinado (seguro) ou, ainda, do firmado para financiamento da aquisição de uma mercadoria (leasing). O raciocínio sequer depende do conceito atribuído à função social. É intuitivo que negócios jurídicos diferentes terão funções diferentes.
Tal fato poderia ter sido percebido por quem busca a base desse princípio contratual na função social da propriedade. A propriedade imobiliária, mais procedimental e menos líquida, jamais teria a mesma função da mobiliária, mais fluida e flexível, e muito menos da imaterial, etérea, imponderável. O objeto da propriedade altera profundamente as dimensões, as defesas e o valor do próprio direito, assim como ocorre com cada espécie contratual e, portanto, com a função social de cada contrato.
Também quem vai à dignidade da pessoa humana teria condição de compreender a multiplicidade de funções sociais existentes. Há avenças que estão anos luz de distância de qualquer reflexão transcendental sobre o que é ou não digno para o homem, caso de um contrato de hedge, por exemplo. Como compará-lo a contratos de plano de saúde? Inviável. Logo, mesmo pretendendo-se buscar na Constituição Federal o fundamento para um reles princípio contratual, a conclusão deveria ser de que os contratos têm funções sociais diferentes.
Por fim, aos que relacionam função social do contrato a uma ideia de solidariedade é preciso dizer que, apesar de terem se perdido no caminho, poderiam ter notado um princípio multifacetado. É ilusão imaginar que as pessoas, quando contratam, solidarizam-se com suas contrapartes. Contrato é um instrumento econômico e quem o celebra deseja atender interesse próprio, e não de outrem. Porém, mesmo que se admita tal mote solidário, cada ambiente negocial o apresentaria de forma distinta, sendo ilógico igualar, por exemplo, contratos entre grandes empresas para um projeto de infraestrutura à compra e venda de um carro entre duas pessoas naturais.
Mas se não existe um conceito unitário de função social, como caracterizá-la? Já que cada contrato tem a sua, não há alternativa senão entender que corresponde à utilidade concreta da avença, ou seja, ao “para que” ela serve. Assim, a função social de um contrato deixa de ser atendida quando ele se torna inútil ou quando o seu propósito, estabelecido por lei ou pelas partes, é desvirtuado ou frustrado por ação dos contratantes ou por fatores externos. A análise é casuística e depende do programa contratual estruturado desde a formação do negócio. Não cabe, pois, generalizar um conceito ou configurá-lo como dogma abstrato.
Vale lembrar que, independentemente de qualquer definição, está-se diante de um simples princípio jurídico, e não da cura para os males do planeta. A função social não torna os contratos mais importantes do que foram no passado. Não representa ferramenta para maior intervenção judicial na vida contratual. Não merece mais atenção que qualquer outra figura jurídica. Por isso, ao cabo da “era dos princípios”, deixemo-la repousar em paz na singeleza de suas referências na lei civil.
Kleber Luiz Zanchim é doutor pela Faculdade de direito da USP e sócio do SABZ Advogados.

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