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quinta-feira, 13 de março de 2014

O Direito Comparado nos séculos XIX e XX (parte 2)

Por Otavio Luiz Rodrigues Junior

Na última coluna [clique aqui para ler], começou-se a tratar da evolução do Direito Comparado, o que se fez evidentemente sem pretensão de conferir ao tema uma exposição exaustiva, o que seria incompatível com a natureza deste espaço. Prossegue-se agora com esse interessantíssimo assunto, com uma seção complementar à coluna anterior e o estudo do Direito Comparado na perspectiva luso-brasileira.

Um comparatista contemporâneo muito importante para a “apresentação” dos Direitos de tradição romano-germânica ao mundo de Common Law é o norte-americano John Henry Merryman, professor emérito da Universidade de Stanford, onde ingressou na Faculdade de Direito no ano de 1953. Merryman é um comparatista, mas também se dedica ao Direito da Arte, especialmente sobre o tema dos direitos culturais e da proteção das obras de arte. Em 2009, publicou-se na Holanda, em Alphen aan den Rijn, pela editora Kluwer, o livro “Thinking About the Elgin Marbles: Critical Essays on Cultural Property, Art and Law”, no qual ele examina o problema do fundamento moral e jurídico da retirada dos mármores do Partenon pelo diplomata britânico Lord Elgin[1], sob a justificativa de que os otomanos não cuidavam adequadamente das antiguidades gregas. Contrariando muitos acadêmicos e o Governo grego, Merryman defendeu corajosamente que o ato não foi imoral ou ilegal e, interpretado à luz de seu tempo, se revelou a melhor decisão em prol da conservação do patrimônio cultural.

Para os que vivem no mundo de Civil Law latino-americano, o opus magum de John Henry Merryman é um livro intitulado “The Civil Law tradition: An introduction to the legal systems of Europe and Latin America”, editado em Palo Alto, pela Stanford University Press, com terceira edição de 2007, desta vez em coautoria com o venezuelano Rogelio Pérez-Perdomo. Há uma edição em português, intitulada “A tradição da Civil Law: Uma introdução aos sistemas jurídicos da Europa e da América Latina”, publicada pelo editor Sergio Antonio Fabris, de Porto Alegre, no ano de 2009, com uma bela tradução de Cássio Casagrande, de quem tive a honra de ser colega na Universidade Federal Fluminense.

Nesse livro, Merryman e Pérez-Perdomo apresentam ao leitor da tradição de Common Law um cenário amplo e razoavelmente atualizado de como são o ensino e as profissões jurídicas, o método e as disciplinas, a legislação e a jurisprudência da tradição romano-germânica, quase sempre em comparação com seus homólogos anglo-saxões. O livro contém teses polêmicas e dados curiosos como: (a) a supervivência do Direito Romano como fonte jurídica reconhecida pelos tribunais da África do Sul[2]; (b) a desnecessidade da codificação no Reino Unido ser um efeito da centralização política e jurídica precoce, como a existência de um direito único no século XII, o que não se deu em França e Alemanha, que precisaram dos códigos como instrumento auxiliar da concentração do poder na pessoa dos soberanos[3]. Merryman, em edições anteriores de sua obra, havia comparado o juiz de Common Law ao magistrado de Civil Law e qualificado este último como “um simples operador de um maquinário desenhada e construída pelo legislador”. Na referida terceira edição, ele reconheceu uma mudança sensível no papel do juiz romano-germânico, especialmente na América Latina, porque ele começava a sair desse papel reservado e discreto e passava a ser incluído no rodamoinho da mídia, das aparições públicas e das solicitações ambientes por declarações e opiniões sobre os fatos sociais.

John Henry Merryman é um comparatista internacionalmente respeitado, muito conhecido na Itália, na França e na América Latina, onde recebeu comendas governamentais e doutorados honorários. No Brasil, infelizmente, ele não era um autor muito lido. A versão para o português de seu livro “The Civil Law tradition” tem mudado essa situação nos últimos anos e os estudos comparatistas brasileiros começam a reconhecer a importância de Merryman, para além do restrito grupo de especialistas nacionais que evidentemente já o conheciam e citavam suas obras em seus trabalhos.

Um grego, naturalizado britânico, nobilitado pela rainha Elizabeth II, cavaleiro da Legião Honra francesa, graduado em Direito pela Universidade de Atenas e com o título de doutor pela Universidade de Cambridge, é hoje um dos grandes nomes internacionais do Direito Privado Comparado. Seu nome é sir Basil Markesinis (1944-) e atualmente ocupa a cátedra de Direito na Universidade de Austin, no Texas, Estados Unidos. Markesinis, para além de uma história de incomparável êxito profissional, tem uma das obras mais consistentes no comparatismo privado do último quartel do século XX e início do século XXI.

Seu livro “The German Law of contract: A comparative treatise”, escrito em coautoria com Hannes Unberath e Angus Johnston, editado pela Hart, em Oxford, com segunda edição do ano de 2006, é uma de suas contribuições mais relevantes no Direito Comparado. A nova edição foi totalmente reescrita para açambarcar as grandes mudanças decorrentes da Lei de Reforma do Direito das Obrigações de 2002, que alterou mais 100 artigos do Código Civil alemão. Markesinis, Unberath e Johnston ofereceram ao público de língua inglesa e aos não fluentes no idioma alemão uma obra duplamente útil: (a) permite que se trave contacto com o novo perfil legislativo e dogmático do Direito das Obrigações da Alemanha; (b) possibilita uma chave para comparação de institutos e figuras jurídicas da tradição romano-germânica e de sua homóloga de Common Law, cuja assimetria é tão evidente.

Dos mesmos autores pode-se também indicar “The German Law of torts: A comparative treatise”, em quarta edição de 1997, publicado em Oxford, pela Hart, cuja qualidade técnica e função comparativa equivale ao livro sobre Direito das Obrigações. Por esses trabalhos e por sua atuação acadêmica tão relevante para a compreensão do Direito germânico pelo universo jurídico de Common Law, Markesinis recebeu em 1999 uma das mais altas condecorações da República Federal da Alemanha, a Grosse Verdienstkreuz.

Os estudos de Markesinis possuem um escopo bastante amplo e uma significativa diversificação de matérias, no que ele se mostra fiel às antigas tradições do comparatismo, que pouco conhecem barreiras entre as áreas do Direito. Ele tem relevantes trabalhos sobre (a) a comparação dos Direitos inglês e francês, em uma perspectiva histórica[4]; (b) responsabilidade delitual e Direito de Seguros[5]; (c) direito à privacidade na Inglaterra e na Itália[6]; (d) Direito da Arte.[7]

Encerrando-se a exposição de alguns nomes contemporâneos do comparatismo no exterior, convém tratar de seus correspondentes no Brasil e em Portugal.

No século XIX, o comparatismo era mais do que um berloque ou um símbolo de erudição, mas uma necessidade. Arnold Wald, em uma conferência proferida no Superior Tribunal de Justiça sobre a influência do Código Civil francês no Direito brasileiro, destacou que a realidade jurídica do Oitocentos no Brasil, especialmente no Direito Civil, era convidativa aos estudos comparatísticos: vivia-se sob a égide das Ordenações Filipinas, as fontes normativas eram caóticas e o Direito Romano ainda era utilizado à larga para fundamentar acórdãos, sentenças, petições, arrazoados e escritos doutrinários. A produção jurídica nacional, como também salientou Arnoldo Wald, o recurso ao comparatismo era uma necessidade também pela carência de bibliografia genuinamente nacional. Como ele afirmou, àquela época, os juristas brasileiros tornaram-se comparatistas por necessidade ou até subconscientemente.[8]

Clóvis Beviláqua, Eduardo Espínola, Carlos Maximiliano e Pontes de Miranda são exemplos dessa tradição que veio do século XIX, iniciada por Teixeira de Freitas, conselheiro Antônio Joaquim Ribas e Lafayette Rodrigues Pereira, em suas obras de Direito Civil, Direito Internacional e Direito Constitucional. Beviláqua foi catedrático de “Legislação Comparada” na Faculdade de Direito do Recife, o que muito diz sobre sua ligação com o Direito Comparado. Seu Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado é um belo exemplo de utilização do método comparatista como instrumento para a interpretação dos dispositivos do então novo Código Civil.[9] Cada artigo é precedido de uma indicação de correspondência, total ou parcial, com dezenas de outros códigos europeus, americanos e asiáticos.

É de autoria de Clóvis Beviláqua a autoria de uma das primeiras obras no Brasil sobre Direito Comparado, publicada em 1897 e destinada a uso por seus alunos na Faculdade de Direito do Recife.[10] Segundo depoimento de um conterrâneo, Araripe Júnior, esse livro “fez época na vida do jurista cearense porque, se até então ele mostrara para as questões filosóficas e literárias, desde o dia daquela publicação tornou pública sua capacidade para empreender entre nós obra semelhante à realizada por Hermann Post na Alemanha[11].

Além dos citados privatistas que também se apresentavam como comparatistas, na segunda metade do século XX, o Brasil assistiu à dilatação do Direito Comparado. Os internacionalistas passaram a conjugar as cátedras de Direito Internacional com as de Direito Comparado, além de esse tema ganhar interesse maior pelos publicistas. É desse período o surgimento de novos estudos sobre a disciplina, elaborados por Caio Mário da Silva Pereira[12], Haroldo Valladão[13], Arnoldo Wald, Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, Sérgio José Porto, Ruy Barbosa Nogueira, Raul Machado Horta e José Afonso da Silva, este último autor de um livro de Direito Constitucional Comparado.[14] Ana Lucia de Lyra Tavares, a propósito dessa renovação do Direito Comparado nas últimas décadas, fez um inventário sobre a evolução dessa matéria nos meios universitários nacionais.[15]

Contemporaneamente, a abertura para novos idiomas, os incentivos para o intercâmbio acadêmico internacional, a criação de blocos econômicos e de integração regional deram margem a um novo despertar do comparatismo jurídico. Na Universidade de São Paulo, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco conserva uma forte tradição juscomparatista, que foi muito favorecida com a liderança do falecido professor Guido Fernando Silva Soares e com os esforços de outros catedráticos como Paulo de Borba Casella e João Grandino Rodas. É de se registrar que o Departamento de Direito Internacional mudou seu nome para Departamento de Direito Internacional e Comparado. Ainda nas Arcadas, é de ser mencionado o papel relevantíssimo de Heleno Taveira Torres no Direito Tributário e sua conexão com o Direito Internacional e o Direito Comparado,[16] no que ele se mantém coerente com uma linha de pesquisa iniciada ainda nos anos 1990.

Maria Helena Diniz, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, instituiu a disciplina de Direito Civil Comparado na pós-graduação dessa tradicional escola de Direito. Nessa mesma universidade, no Direito Constitucional, Maria Garcia tem desenvolvido estudos respeitáveis no âmbito comparatista.

No Rio de Janeiro, Francisco Amaral, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, criou o Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro. Jacob Dolinger e Maria Celina Bodin de Moraes foram pioneiros na disciplina de Direito Civil Comparado. [17]

Em Brasília, podem-se citar como nomes representativos do Direito Comparado os professores Arnaldo Godoy[18], com vastíssima produção bibliográfica nesse campo, muita vez combinando-a com o Direito Internacional e a História do Direito, e Gilmar Ferreira Mendes, da Universidade de Brasília, este último com maior ênfase no âmbito do controle de constitucionalidade.

Véra Jacob de Fradera[19] e Claudia Lima Marques, seguindo a tradição de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva no Direito Privado, possuem respeitável produção no Direito Comparado, especialmente em questões relativas ao Direito do Consumidor, à Convenção de Viena de Compra e Venda Internacional e às codificações no Direito Civil.

No Nordeste, o Direito Constitucional Comparado tornou-se disciplina no mestrado da Universidade Federal de Pernambuco graças a Ivo Dantas, que também é autor de obras nessa área.[20] Na Universidade Federal do Ceará, para além de sua condição de gigante do constitucionalismo brasileiro, Paulo Bonavides é também um dedicado estudioso do comparatismo no Direito Constitucional.

As dificuldades do estudo comparatístico no Brasil permanecem: poucas ou antigas traduções, para se não falar das que se podem considerar como de qualidade discutível; estudo ainda incipiente dos métodos do Direito Comparado; confusão entre estudos de Direito Estrangeiro e de Direito Comparado, além da reduzida comunicação entre comparatistas das diferentes áreas do Direito Público e do Direito Privado. A enunciação de alguns dos comparatistas contemporâneos, cujo caráter é puramente exemplificativo, permite assinalar que, mesmo com tais limitações, os professores de Direito Comparado seguem como legatários de uma tradição que surgiu com a própria formação na nacionalidade, com a independência política em 1822. Se a necessidade dos estudos de Direito Comparado era, como realçado por Arnoldo Wald, um efeito “subconsciente” de nossas poucas fontes bibliográficas e do caótico estado de nossas normas de Direito Civil, hoje o Direito Comparado é ainda mais importante porque sem ele não se pode mais acompanhar os inexoráveis avanços nas variadas províncias jurídicas, cuja velocidade é incompatível com a capacidade de adaptação humana.

Na próxima e última coluna da série sobre o tema, o Direito Comparado contemporâneo em Portugal e seus grandes nomes.


[1] Thomas Bruce, 7º Conde de Elngin (1776-1841).

[2] MERRYMAN, John Henry e PÉREZ-PERIDOMO, Rogelio. The Civil Law tradition: An introduction to the legal systems of Europe and Latin America. 3. ed. Stanford, California: Stanford University Press, 2009. p. 27.

[3] MERRYMAN, John Henry e PÉREZ-PERIDOMO, Rogelio. Op. cit. p. 22.

[4] MARKESINIS, Basil. Quattro secoli di convergenze e divergenze fra diritto inglese e diritto francese. Rivista trimestrale di Diritto e Procedura Civile, v. 59, n. 3, p. 835-865, sett. 2005.

[5] MARKESINIS, Basil. La perversion des notions de responsabilité civile délictuelle par la pratique de l’assurance. Revue Internationale de Droit Comparé, v. 35, n. 2, p. 301-317, avr./juin 1983.

[6] MARKESINIS, Basil; ALPA, Guido. Il dirrito alla “privacy” nell’esperienza di “common law” e nell’ esperienza italiana. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, v. 51, n. 2, p. 417-454, giu. 1997.

[7] MARKESINIS, Sir Basil. Good and evil in Art and Law: An extended essay. New York-Wien: Springer, 2007.

[8] WALD, Arnoldo. A influência do Código Civil francês no Direito brasileiro. Conferência proferida no Seminário sobre o Bicentenário do Código Civil Francês em 27 de setembro de 2004. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 2004.

[9] BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil: Commentado. 5. ed. São Paulo:F. Alves, 1936. 6 v.

[10] BEVILAQUA, Clovis. Resumo das licções de legislação comparada sobre o Direito Privado. 2. ed., rev. e augm. Bahia: Magalhães, 1897.

[11] Apud GOMES, Oscar Martins. Clóvis Beviláqua, o comparatista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, v. 6, p.401-406.

[12] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito Comparado, ciência autônoma. Revista Forense, v. 146, n. 597/598, p. 24-32, mar./abr. 1953.

[13] VALLADÃO, Haroldo. O estudo e o ensino do direito comparado no Brasil, séculos XIX e XX. Revista de Informação Legislativa, v. 8, n. 30, p. 3-14, abr./jun. 1971.

[14] SILVA, José Afonso da. Um pouco de direito constitucional comparado. São Paulo : Malheiros, 2009.

[15] TAVARES, Ana Lúcia de Lyra. O ensino do direito comparado no Brasil contemporâneo. Direito, Estado e Sociedade, n. 29, p. 69-87, jul./dez. 2006.

[16] TORRES, Heleno Taveira (Coord). Sistema tributário, legalidade e Direito Comparado: entre forma e substância. Belo Horizonte : Forum, 2010.

[17] TAVARES, Ana Lúcia de Lyra. Op. cit. p. 73.

[18] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A execução fiscal administrativa no Direito Tributário Comparado. Belo Horizonte : Fórum, 2009; GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito Constitucional Comparado. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2006; GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito Tributário Comparado e tratados internacionais fiscais. Porto Alegre : S.A. Fabris, 2005.

[19] FRADERA, Véra Maria Jacob de. Reflexões sobre a contribuição do direito comparado para a elaboração do direito comunitário. Belo Horizonte : Del Rey, 2010.

[20] DANTAS, Ivo. Novo Direito Constitucional Comparado : Introdução, teoria e metodologia. 3. ed., rev., atual. e ampl. Curitiba: Juruá, 2010.

Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

Revista Consultor Jurídico, 12 de março de 2014

 

 

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