Powered By Blogger

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Insegurança judicial - Estado de São Paulo, 30/9/2006

Insegurança judicial

Até que ponto podem os juízes invocar a “função social do contrato”, um princípio jurídico consagrado pelo Código Civil que entrou em vigor há três anos, para, ao julgar um litígio, obrigar uma das partes a arcar com obrigações que não foram previstas no acordo livremente firmado com a outra parte? Ao aplicar o Código de Defesa do Consumidor, pode um magistrado tomar decisões sem levar em conta o impacto econômico que elas terão na saúde financeira das empresas? Em suma, qual é o limite da discricionariedade dos juízes na interpretação dos códigos e leis?

Essas questões, embora antigas, voltaram à ordem do dia por causa de uma discussão jurídica inédita a respeito dos planos de saúde. Ela começou quando uma dona de casa baiana ingressou na Justiça com um pedido para garantir tratamento de obesidade mórbida não num hospital, como previa seu plano de saúde, mas num spa que oferece academia, aula de dança, aeróbica, hidroginástica, nutricionista e fisioterapia. Ao se inscrever no plano, ela pesava 82 quilos, tendo engordado 57 quilos após a assinatura do contrato. Por isso, a estadia num spa seria um tratamento médico e não estético, diz a dona de casa.

Ao rejeitar essa pretensão, a operadora de serviço de saúde afirmou que pacientes com risco de vida decorrente de doenças como obesidade mórbida deveriam internar-se em hospitais. Mesmo assim, a juíza encarregada do caso acatou a reivindicação da dona de casa e concedeu liminar, obrigando o plano de saúde a pagar todas as despesas do spa, exames médicos e remédios. “Quando a dignidade do ser humano é afetada, a Justiça tem que agir”, disse a titular da 2ª Vara de Defesa do Consumidor de Salvador, Ana Ferreira, cuja decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça da Bahia, sob a alegação de que a jurisprudência da corte manda atender aos pedidos para tratamento de obesidade mórbida.

A decisão, que concedeu à dona de casa baiana o direito de passar 210 dias num spa, com diárias de R$ 1 mil, deixou os planos de saúde apreensivos. Classificando a liminar como um “despropósito”, as operadoras temem que esse precedente comprometa o equilíbrio financeiro de todo o setor. Segundo elas, os planos atualmente em vigor incluem as operações de redução de estômago em hospitais. Além disso, desde 2001 o SUS vem custeando parte dessa cirurgia e, na Bahia, a partir de 2005, ela passou a ser oferecida gratuitamente pelo governo estadual.

Entre os médicos, a decisão causou perplexidade. “Estudos mostram que, nesses níveis de obesidade, o tratamento indicado é cirúrgico. O tratamento recomendado é dieta e atividade física, junto com nutricionista, psiquiatra e endocrinologista, que o plano de saúde deve cobrir. Spa é privilégio”, afirma o médico Nilton Kawahara, do Hospital das Clínicas. “Para obesidade mórbida, há uma série de tratamentos previstos por sociedades médicas e oferecidos por planos de saúde. Desde quando um spa pode ser considerado serviço médico?”, indaga o presidente da Associação Brasileira de Medicina de Grupo, Arlindo Almeida.

Na realidade, a decisão da Justiça baiana em favor de uma pretensão que os especialistas consideram absurda é mais uma demonstração da imprevisibilidade dos tribunais e da falta de discernimento de alguns de seus integrantes. Sentenças insensatas expedidas por juízes que se vêem como reformadores sociais só tendem a gerar incertezas com relação à ordem legal e às regras do jogo econômico.

Ao proteger o que consideram a parte mais fraca nos litígios, magistrados que não conhecem noções básicas de economia acabam endossando o descumprimento não só de contratos, mas das próprias leis. E, ao interferir nas relações de consumo e nos mercados de serviços privados, como é o caso dos planos de saúde, eles acabam estimulando o desrespeito aos direitos, gerando com isso efeitos opostos dos que esperam.

Como podem os agentes econômicos sentir-se seguros para investir num país onde alguns juízes confundem hospital com spa e privilégios com “dignidade humana”?


Nenhum comentário:

Postar um comentário